A Medida da Individualidade



Em Deuteronômio 6, 4 lemos: “Ouve, Israel, o SENHOR nosso Deus é o único SENHOR”. Esse versículo constitui a primeira frase da oração conhecida como Sh’ma, recitada diariamente por todos os judeus do sexo masculino até hoje. O próprio Jesus cita esse versículo e o seguinte, combinados com Lv. 19, 18, como sendo os maiores mandamentos (Mc 12, 29-34).

De fato, todas as coisas na criação tem seu eixo central em Deus, de modo que tudo é ordenado a partir dele. Não há nada semelhante a ele, e compreender isso faz parte da própria definição de “vida eterna” (Jo 17, 3). Paulo afirma categoricamente que há um só Senhor Deus e Pai, o qual é sobre todos, por todos e em todos (Ef. 4, 4-6), enquanto o salmista afirma que só ele faz maravilhas (Sl 72, 18).

Nada se compara ao Pai, pois Deus é único, um e especial.

Da mesma forma, o homem, que é a imagem conforme a semelhança de Deus, também sente a si mesmo como um, único e especial; cada um de nós se sente o centro de toda a criação, onde tudo gira à nossa volta.

Porém, enquanto permanecermos enraizados no nosso ego, a medida dessa individualidade se expressa de forma negativa, pois passamos a crer que nossas opiniões e interesses são mais importantes que os de todos os demais. Permanecemos incapazes de verdadeiramente nos colocarmos no lugar do nosso próximo e enxergar as coisas pelo seu ponto de vista. Egocêntricos, passamos a nos relacionar com as pessoas apenas na medida do benefício que podemos auferir. Exploramos nossos relacionamentos em nome do poder, do reconhecimento, da honra, das vantagens, ou do direito que desejamos ou achamos que nos é devido.

A palavra de Deus diz que, por causa do pecado, todas as coisas estão sujeitas à vaidade (Rm 8, 20). Assim, há uma mentalidade mundialmente difundida que prega a celebração incondicional de si mesmo. Trata-se de uma filosofia de vida voltada para o ganho pessoal, que determina uma forma de viver totalmente voltada para os interesses e satisfações pessoais. E essa opção de vida tem tornado o homem cada vez mais egoísta, vaidoso, individualista e isolado na solidão das suas próprias predisposições. Essa mentalidade diz que cada um de nós possui direitos sobre coisas e pessoas, e que nos é legítimo sair em defesa desses direitos.

O nome disso é iniqüidade.

Iniqüidade é o ímpeto de defender sempre nossos próprios direitos, ou os direitos que julgamos ter. É a expressão corrompida da medida da nossa individualidade. Note que a iniqüidade não é a maldade e si, mas é a raiz da maldade.

O homem iníquo é aquele que pensa primeiramente em si mesmo. Ele se isola em seus próprios pensamentos e apetites, priorizando aquilo que lhe convém. Esse homem acaba por revestir-se com seus próprios ressentimentos, deixando-se amargurar pelos seus desapontamentos. Ao se deparar com novos desafios e dificuldades, julga sempre que seus direitos estão sendo feridos e isso o magoa. Então, tal homem aprende a cultivar com especial cuidado seu rancor contra as pessoas que ele julga serem responsáveis por violar suas expectativas ou frustrar os seus planos.

E por causa da sua iniqüidade, ele se afasta do amor e passa a cometer maldade (Mt 24, 12). Ele se torna agressivo, possessivo, impaciente, ignorante, insensível e desconfiado. Seu egocentrismo faz com que ele opte por viver isolado em suas próprias razões, andando atrás apenas dos seus próprios direitos e desejos. Ele olha para as pessoas e acredita que todos devem respeitar o seu direito de ser feliz, de ser amado e de viver satisfeito (no trânsito, ai daquele que incomodar seu sagrado direito de dirigir, atrevendo-se a cometer erros!). E por isso, ele acaba produzindo a maldade, pois não vê limites ao defender seus direitos. O homem iníquo é capaz de odiar alguém em nome das suas razões. Ele é capaz de ferir alguém em nome da defesa do seu patrimônio, de prejudicar alguém em nome da sua conveniência, de sustentar uma amargura por anos a fio, apenas porque escolheu supervalorizar aquilo que ele considera ser seu direito pessoal, em detrimento do seu relacionamento com o próximo.

O homem iníquo pode até supor que pensa nos outros, pois costuma dizer que tudo o que faz é para o bem da sua família. Costuma dizer que tudo o que ele acumula é pelos seus filhos, todo o “seu sacrifício” é para garantir o conforto da sua esposa, ou uma educação melhor para suas crianças. Mas pouco ou nada se importa com os filhos, a família ou a esposa dos outros. E ai daquele que discordar da sua opinião sobre o que é melhor para a sua família (ainda que sejam os membros dessa própria família – aqueles para quem ele diz que faz todas as coisas)!

Quando a sua sobrevivência emocional está comprometida, o homem iníquo não respeita ninguém. Ele é capaz de passar por cima de quem quer que seja – pai, mãe, irmãos, esposa, marido, filhos, amigos, parceiros, sócios ou seja quem for – para assegurar suas prerrogativas. É até capaz de destruir um relacionamento em nome do seu direito de ser feliz. Não que este homem seja mau de fato, mas ele fez uma opção por uma vida iníqua, e isso levou a maldade para dentro dele e da sua vida. Ele não tem a intenção deliberada de machucar alguém, mas pensa: “Fazer o quê? Eu não podia correr o risco de sair prejudicado...”

Porém, deixando de lado a opção pela iniqüidade, e permitindo que Cristo nos leve a um lugar onde poderemos ser transformados pela renovação do nosso entendimento, temos a chance de adquirir os atributos do Pai. Então nos aproximamos dele, pois passamos a compartilhar da sua essência. Então vemos a Deus como ele é, pois assim como ele é nós seremos também.

Se aprendermos a nos corrigir e construirmos um relacionamento verdadeiro com o próximo, amando genuinamente, livre das nossas demandas e carências, então essa medida de individualidade se expressará em amor e doação ao próximo. Então você saberá que é especial, assim como o Pai o é, porque só você pode dar aos outros aquilo que dá a eles. O seu relacionamento com as pessoas será exatamente como o do SENHOR, que ama seus filhos. É assim que você revelará que é um com o Pai: amando a seu próximo como Cristo te amou.

Quando o Pai criou cada um de nós do jeito que somos, ele o fez para que pudéssemos manifestar seus atributos de forma especial e única, e é por isso que devemos colocar a medida da nossa individualidade a serviço de Deus. Cada um de nós traz dentro de si a possibilidade de manifestar a plenitude do Reino de Deus de forma individualizada. Não para que pudéssemos nos gloriar naquilo que nos torna únicos, mas para que aquele que deseja se fazer UM conosco possa ser, em tudo, glorificado. A medida da nossa individualidade não pode ser utilizada para testemunhar daquilo que reclamamos como nosso, mas sim para evidenciar aquilo que só nós podemos repartir por sermos quem somos.

É assim que organizamos nossa realidade partindo da ótica de Deus como eixo central da nossa vida: nos relacionando com nosso irmão da mesma forma que ele se relacionou conosco.

Há um desafio da parte de Deus em não vermos a ninguém mais segundo a carne (2Co 5, 14-17). Não devemos mais enxergar, ou mesmo avaliar as pessoas, segundo os olhos da nossa própria natureza, mas devemos buscar discernir todas as coisas a partir da perspectiva de Cristo, e Cristo vê todas as coisas segundo a ótica da sua misericórdia, do seu favor e da sua graça. Deus sempre nos olha com olhos de amor, de esperança, de bondade, de misericórdia e de paz, pois ele nos ama como um Pai ama seus filhos. Cristo não nos olha com olhos de julgamento (Jo 8, 15). É assim que a medida da sua individualidade manifestará a porção de graça que Deus confiou à sua vida. Esse é o seu ministério.

Em testemunho da Verdade
--Danilo.

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